terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Boas histórias de assalto ao Tesouro

INFORMAR & FISCALIZAR
Boas histórias de assalto ao Tesouro

Por Rolf Kuntz em 1/12/2009

As violências contra o Tesouro têm sido um dos assuntos mais constantes da imprensa, embora a vítima nem sempre seja citada de modo explícito. O Estado de S.Paulo mostrou indícios de fraude em nove convênios do governo com a União Nacional dos Estudantes (UNE), mimoseada em dois anos com R$ 2,9 milhões pelo Ministério da Cultura. A Folha de S.Paulo contou como se pode criar uma igreja e ficar livre de impostos com investimento de apenas R$ 418,42. As duas matérias foram publicadas no domingo (29/11). Na semana anterior, jornais noticiaram e discutiram as novas bondades fiscais concedidas a setores eleitos pelo Executivo, incluído o automobilístico, o mais influente segmento da indústria.

Segundo o Estadão, os convênios da UNE estão em situação irregular, por falta de documentos e de prestação de contas. Um dos financiamentos, no valor de R$ 342 mil, foi destinado à realização do congresso nacional da entidade, em Brasília. Parte da verba seria usada para segurança e a previsão dessa despesa foi baseada em orçamento de uma empresa fantasma. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a pré-candidata Dilma Rousseff estiveram no evento.

Programas emperrados

A matéria é especialmente importante porque o presidente da UNE, Augusto Chagas, já se declarou estudante profissional, em mais de uma entrevista, e afirmou ser obrigação do governo dar dinheiro a entidades estudantis. A matéria também cita, como exemplo da generosidade oficial, a entrega de R$ 435 mil para a produção de um livro e de um documentário. Nenhum dos dois foi produzido e não houve prestação de contas.

A imprensa tem contado histórias semelhantes a respeito de dinheiro entregue ao MST, mas o Ministério do Desenvolvimento Agrário insiste em afirmar a correção de sua política de repasse de verbas.

A reportagem da Folha revela como bastaram dois dias úteis e R$ 218,42 em despesas de cartório para a fundação da Igreja Heliocêntrica do Sagrado Evangelho. Com mais R$ 200, os três fundadores já tinham conseguido o CNPJ e puderam abrir uma conta bancária e realizar aplicações financeiras livres do Imposto de Renda e do Imposto sobre Operações Financeiras.

Não é preciso indicar um número mínimo de fiéis nem dar informações sobre a doutrina da igreja. Basta apresentar o registro da assembléia de fundação e o estatuto oficializado num cartório. Assim se interpreta o preceito da liberdade religiosa inscrito na Constituição. Talvez seja complicado restringir a aplicação desse preceito, mas a reportagem mostrou como é fácil aproveitá-lo para a vigarice e para a fuga do pagamento de impostos. Certamente mais fácil, em termos legais, seria selecionar com maior seriedade as instituições beneficentes para a concessão de ajuda financeira e de isenção fiscal. Na última discussão do assunto, o governo preferiu jogar para o alto a seleção e restabelecer o financiamento a todas as entidades. Muito mais simples e politicamente menos custoso.

Deve-se creditar alguma defesa do Tesouro Nacional ao Tribunal de Contas da União (TCU), órgão auxiliar do Legislativo. O presidente da República e alguns de seus ministros têm responsabilizado o TCU – quando não o Ibama – pelo emperramento de seu programa de obras. Em muitos casos, como já se mostrou muitas vezes, o projeto nem sequer foi detalhado tecnicamente. Noutros, as normas de elaboração de projetos e de licitação de obras foram simplesmente ignoradas. Tudo isso já foi publicado.

Governantes felizes

Como se nenhum desses dados fosse relevante, o Executivo insiste na tentativa de limitar a fiscalização. O projeto da Lei Orgânica da Administração Pública recomenda o exame das obras acabadas e dos serviços concluídos, devendo ser excepcionais o controle prévio ou concomitante. Esses pontos foram divulgados nas últimas semanas. A grande novidade na cobertura do assunto foi apresentada em manchete pelo Globo, na sexta-feira (27/11): uma entrevista com o ministro-chefe da Controladoria Geral da União (CGU), Jorge Hage. "O capítulo de controle precisa ser profundamente alterado, tem coisas inaceitáveis. Propõe praticamente a eliminação do controle preventivo, quando, a nosso ver, a idéia é exatamente o contrário (...) O primeiro dever dos órgãos de controle interno é reagir preventivamente", disse o ministro, segundo o Globo.

A entrevista é excepcionalmente relevante porque Jorge Hage comanda um setor do Executivo, sendo, portanto, dependente da Presidência da República. A mesma crítica, segundo o jornal, havia sido feita pelo chefe da CGU numa reunião do grupo de infraestrutura do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, com participação de outras importantes figuras do gabinete presidencial.

Todas essas matérias são exemplares, não só pela qualidade do trabalho, mas também porque mostram quanto é difícil traçar uma fronteira entre informação e fiscalização. Essa fronteira provavelmente não existe e por isso os jornais não poderão atender à recomendação do presidente Lula. Segundo ele, os jornais deveriam limitar-se a informar, sem fiscalizar. Para seguir esse conselho, terão de afrouxar a atividade informativa. O governo certamente ficaria mais feliz.

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